Inovação, sem exclusão

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Renata Fabris1

Alex Cavalcante Alves2

O Brasil tem se tornado referência mundial em governo digital. São louváveis os esforços de modernização dos softwares e da ampliação de serviços disponíveis à população para o exercício dos atos de sua vida civil e seu relacionamento com a Administração Pública por meio de ferramentas eletrônicas. Esses esforços tiveram seu ponto de partida normativo com a edição de Decreto em 18 de outubro de 2000, que criou o Comitê Executivo do Governo Eletrônico, no Conselho de Governo, tiveram marco importante com o Decreto nº 8.638, de 15 de janeiro de 2016, que instituiu a Política de Governança Digital no âmbito dos órgãos e entidades da administração pública federal, e culminaram com a edição do Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020, que instituiu a Estratégia de Governo Digital, ainda vigente. Os avanços obtidos para a transparência por meio do Processo Judicial Eletrônico, do sistema de processo administrativo eletrônico (SEI) e de instrumentos para a obtenção de informações sob a égide da Lei de Acesso à Informação, são expressivos.

Em paralelo aos avanços tecnológicos, os esforços de inovação em geral na Administração Pública também têm ganhado espaço na última década, com criação de Comitês, Coordenações e mesmo Diretorias e Secretarias dedicadas ao assunto. Nelas, servidores públicos buscam, por meio da aplicação de técnicas e consolidação de reflexões, construir, “prototipar” e implementar soluções inovadoras para os problemas da população. Entretanto, todos esses esforços, sejam de tecnologia de informação, sejam de mudança de cultura organizacional e implementação de soluções inovadoras, muitas vezes esbarram em fatores como a ausência de uma gestão comprometida com sua efetiva implementação e, consequentemente, interpretações de agentes públicos restritivas dos direitos à informação, o que pode culminar numa espécie de análise de admissibilidade do requerimento, negando o seu recebimento por não ser o local ou a forma adequada para a protocolização.

Além disso, é usual não haver padronização, seja dos requerimentos administrativos, seja da forma para se efetivar o acesso à pretendida informação. E mais, há também os casos em que a Administração não oferece alternativa para aqueles que não tenham condições de utilizar os meios eletrônicos disponibilizados, promovendo exclusão por fatores como falta de poder aquisitivo e dificuldade no manuseio de novas tecnologias, o que afeta, por exemplo, pessoas com deficiência e idosos, obrigando-os a se socorrer da ajuda de terceiros. Promove-se, dessa forma, a invisibilidade digital e, por sua vez, a violação aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, risco já apontado pelos professores Justo Reyna, Emerson Gabardo e Fábio de Sousa Santos no artigo “Governo Eletrônico, Invisibilidade Digital e Direitos Fundamentais Sociais”.

Há ainda casos em que o processo é eletrônico, porém, exige-se que a protocolização ocorra em ambiente virtual, por meio de envio de e-mail ao endereço

eletrônico disponibilizado e, também, fisicamente, no balcão do órgão, o que vai de encontro ao princípio da desburocratização positivado pela Lei nº 14.129/2021 (Lei do Governo Digital). Com essa ausência de padronização e de oferta de alternativas, o que deveria ser uma vantagem para o cidadão acaba dificultando o acesso aos serviços públicos o que, por sua vez, gera demandas administrativas totalmente desnecessárias e caras para o povo, que sustenta a máquina administrativa.

O controle prévio de conteúdo ou forma de atos/requerimentos das partes praticados nos processos eletrônicos, e que não ocorra nos próprios autos, afigura-se inconstitucional e gera insegurança jurídica, ainda mais se for o caso de duplicidade de atos por meio da reprodução física dos processos digitais, pois não há garantia de que os atos praticados em qualquer dos ambientes, virtual ou físico, serão reproduzidos integralmente em ambos os volumes.

Não é demais lembrar que, apenas em processos cujo sigilo tenha sido decretado, torna-se legítima porventura limitação de acesso a quem não seja parte, terceiros interessados ou seus representantes sem a apresentação de procuração. Criar barreiras onde não deveriam existir no acesso à informação significa o descumprimento do princípio da legalidade, porque a atividade administrativa realizada contrariamente ao assinalado pela lei é vedada e, por sua vez, ineficiente, sem falar que o ideal republicano exige que o Poder Público atue consoante ao princípio democrático na persecução das suas atividades meio e fim, como bem salientado por Maurício Zockun, Carolina Zancaner e Gabriela Bandeira de Mello em “A participação popular no Direito Administrativo e o princípio da eficiência”, no qual assinalam que a participação popular no desempenho das atividades estatais não é uma faculdade outorgada aos titulares do Poder, mas sim uma garantia constitucional.

Contudo, como qualquer cidadão poderá exercer seu direito de controle se o Administrador dificultar, indeferir e limitar o acesso a processos? Os dirigentes públicos precisam estabelecer o acesso à informação como objetivo de governança, e assegurar que os diversos níveis de gestão estejam cumprindo essa determinação legal. Assim, a fim de prevenir dispêndios ilegítimos e abusos de autoridade por violação a direitos dos cidadãos, recomenda-se que, mediante cadastro prévio realizado diretamente pelo cidadão, no próprio sistema, com uso de CPF, senha ou token, o acesso, bem como o protocolo/peticionamento, seja permitido e desburocratizado, garantindo-se resposta aos seus pedidos por agente competente, e de forma motivada. Deveria ser essa a regra, mas se não houver gestão sobre a efetividade das ferramentas e ofertas de alternativas de contato ao uso dos sistemas, todo o empenho em inovar terá se demonstrado ineficiente.

Em entrevista concedida por um dos autores deste artigo ao jornal A Gazeta, do Espírito Santo, em novembro de 2017, foi destacada a necessidade da Administração Pública se reestruturar, até mesmo para fazer frente ao grau de exigência – e de celeridade – cada vez mais elevado das demandas da população, em especial com o surgimento das novas tecnologias. Essa modernização, entretanto, não pode esquecer da sua razão de ser: prestar um serviço de excelência, da melhor forma possível. Isso diz respeito a oferecer ferramentas modernas para uma população que domina ferramentas tecnológicas, tem plenas condições e deseja utilizar-se delas em sua relação com a Administração; e oferecer atendimento igualmente eficiente e desburocratizado à significativa parcela da população que não dispõe de acesso efetivo a essas ferramentas.

Se os esclarecimentos demandados pela população sobre algum serviço público podem ser fornecidos por e-mail, é justo que determinado órgão se recuse a responder e- mails, obrigando os usuários a utilizar sistemas de processo que demandam até mesmo a leitura de um extenso manual de operação? É justo que um órgão se furte de disponibilizar telefones para contato, com vistas a esclarecer dúvidas sobre determinada situação, mantendo apenas canais tecnológicos impessoais? Quem está gerenciando o atendimento desses canais, zelando pela tempestividade, qualidade e completude das respostas às informações requeridas? São perguntas legítimas, para as quais muitas vezes faltam respostas – ou a transparência necessária, que talvez seja propositalmente.

A inovação, portanto, é muito salutar e bem-vinda, tendo alcançado grande avanço no período pandêmico com o cadastro para acesso a serviços públicos por meio da plataforma Gov.br, mas, apesar disso, é preciso que a sociedade esteja vigilante para que essa não acabe se tornando, por vias transversas, o oposto do espírito que permeou os incessantes trabalhos de seus dignos idealizadores na academia, na classe política, na advocacia e no serviço público, que tanto se dedicaram a implementar inovações com vistas a tornar os serviços públicos mais céleres, acessíveis, transparentes e eficientes, em consonância com o que estabelece a Constituição Federal. Inovação não pode, de maneira alguma, significar exclusão.

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